Imagine que
você é o dono da maior rede de jornais do seu país, em uma época em que não
existe internet, não existe nem televisão, e o rádio e o cinema são os meios de
comunicação mais influentes que existem. Você é um craque em manipular a
opinião pública, a ponto de levar multidões para ver (e adorar!) os filmes da
péssima atriz com quem você se casou. De repente, surge um jovem talentosíssimo
e faz um filme que não apenas conta em detalhes a sua vida, como também expõe
sem dó todos os seus podres.
Sim, isso
aconteceu nos Estados Unidos, em 1941.
A história por trás de “Cidadão Kane” é tão interessante
quanto o próprio filme, se não for ainda mais. Dirigido, escrito e estrelado
por Orson Welles (que na época tinha
inacreditáveis 26 anos), o filme enfureceu o magnata das comunicações William Randolph Hearst (1863-1951), a
ponto de gerar uma briga que foi assunto
nacional e que, diga-se de passagem, acabou pegando mal para a imagem dos
dois. Mas vamos começar a história do começo.
William Randolph Hearst chegou ao final
da década de 1930 como o mais influente homem da imprensa
norte-americana. Ele havia começado sua carreira de empresário aos 24 anos de idade, quando assumiu a
direção do jornal falido que era de
seu pai, George Hearst. Apaixonado
por sensacionalismo, William Hearst criou
o conceito de “imprensa marrom”, publicando matérias bombásticas e bizarras, que, muitas vezes não passavam de invenções da sua própria cabeça. Não satisfeito em ter a opinião pública na palma de sua mão,
ele também tentou a carreira política,
tendo se candidatado à prefeitura de
Nova Iorque duas vezes, a governador do Estado uma vez e até a vice-governador, também uma vez.
Perdeu a eleição nas quatro candidaturas. Sua vida pessoal foi trágica. Ele foi infeliz no
casamento e não era exatamente uma
pessoa popular e adorada em seu meio, além de sofrer de uma compulsão doentia por acumular objetos.
Enquanto isso,
o garoto-prodígio Orson Welles já
possuía um currículo considerável: ele havia
iniciado a carreira no teatro e causado
polêmica (coisa que ele adorava) com uma montagem de
“Macbeth”
de Shakespeare apenas com atores
negros, coisa avançada para a época. Depois, foi trabalhar na
emissora de rádio CBS como
diretor e locutor.
Entrou para a história ao causar comoção nacional e até mesmo
mundial com uma
adaptação ultra-realista
do livro “A Guerra Dos Mundos”, do
escritor H. G. Wells. Orson transformou essa obra clássica (
https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Guerra_dos_Mundos_(livro))
em uma
falsa matéria jornalística radiofônica,
encenando-a ao vivo na rádio de modo a enganar (e apavorar!)
o público dos EUA, fazendo todos
pensarem que se tratava de uma
invasão real
de alienígenas (Ouça aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Xs0K4ApWl4g). Eram
tempos de
guerra, e o povo se assustava facilmente com qualquer notícia estranha,
principalmente se precedida da vinheta
“Interrompemos
nossa programação para...”, e
Welles,
chegado a uma controvérsia, sabia disso.
A
“pegadinha” causou comoção nacional e animou o jovem artista a
ir para Hollywood, tentar a carreira no
cinema.
Lá chegando,
ele foi contratado pelos
estúdios RKO,
onde fechou um contrato, com uma condição que é o sonho de qualquer realizador
da mídia até hoje:
“liberdade total de criação, como diretor, ator e autor”. Para
um rebelde como ele, então, era uma bênção. Na RKO, propuseram a ele fazer
um filme sobre a vida de William Randolph
Hearst.
Orson aceitou,
e assim surgiu “Cidadão Kane”. O clássico não apenas mostra o
personagem central, batizado de
Charles
Foster Kane, como um homem
megalomaníaco,
sem limites e sem caráter, como também demonstra o
espantoso conhecimento que Welles tinha da vida de Hearst. Como se
não bastasse, ainda critica de maneira devastadora
as pessoas que conviveram com o milionário, principalmente a
esposa
dele,
Susan Alexander (
Dorothy Comingore), baseada na
atriz e bailarina Marion Davies (1897-1961),
que foi amante de
Hearst e depois se casou com ele.
“Cidadão
Kane” trouxe muitas novidades para sua época, como a
narrativa não linear (a história começa
praticamente do final) utilizando
vários
pontos de vista (algo que voltou à moda agora), a
inserção de cinejornais fake conferindo incrível realismo ao filme e
despertando ainda
mais confusão na mente
do espectador, os
ângulos de câmera desconcertantes
(como, por exemplo, na
cena da morte de
Kane) e até mesmo as então
inéditas técnicas
de maquiagem para envelhecimento dos personagens.
Hearst, no entanto, não achou graça
nenhuma. Pelo contrário, ele
ficou
furioso com a biografia disfarçada (
se
é que dá para chamar de “disfarçada” uma história real em que apenas os
nomes dos personagens são trocados), e
nem
um pouco autorizada, que o rapaz de 25 anos fez dele. Enlouquecido,
articulou uma
campanha de boicote e até
de proibição ao filme. Tentou
comprar
todas as cópias da RKO e tacar fogo nelas, para que não restasse nenhuma
para contar a história. Mas não conseguiu exterminar o clássico, que
entrou para a história do cinema e recebeu
inúmeros elogios dos críticos, embora,
acredite,
tenha sido
um fiasco comercial. Será
que esse fracasso de bilheteria foi por causa da campanha armada por Hearst? Historiadores
especializados
dizem que sim.
Com esse
filme, Orson Welles conseguiu a
proeza de se tornar inimigo de um dos
poucos homens que poderiam realmente destruir sua carreira. Tal insanidade,
aliás, deixou o cineasta orgulhoso. Conta a lenda que, durante o evento de estréia de “Cidadão Kane” na
cidade de San Francisco, Orson encontrou Hearst em um elevador
e, na maior cara de pau, convidou o
milionário para assistir ao lançamento do filme. Hearst olhou para ele e não
disse nada. Mas quando ele saiu do elevador, Orson gritou: “Kane teria
aceitado!”.
William Randolph Hearst faleceu aos
88 anos, em
Beverly Hills, Califórnia, de um
problema cardíaco que tinha muito
mais fundo emocional do que físico. Seu lendário casarão, que fica
entre Los Angeles e San Francisco (
Link
do casarão: http://hearstcastle.org/) tornou-se
uma espécie de museu que até hoje atrai
milhões de visitantes de todo o mundo.
“Cidadão
Kane” faturou o Oscar de Melhor
Roteiro Original em 1942, embora
tenha sido indicado em mais oito
categorias. Esse, aliás, teria sido o único Oscar que Orson Welles
ganhou. Mas essa injustiça foi corrigida
em 1970, quando a Academia entregou
a Orson o Oscar Honorário (pelo Conjunto
da Obra). E também em 1995, ano
da comemoração dos 100 Anos de Cinema,
quando o American Film Institute (o
famoso AFI) elegeu “Cidadão
Kane” como o Melhor Filme da
História. Isso é que dá ser à frente do seu tempo.