Mais de sete décadas após a sua criação, ele continua rendendo polêmicas intermináveis. Houve, inclusive, algumas tentativas de torná-lo meigo e bonzinho, mas o fato é que a graça estava mesmo na total incorreção política de seus desenhos. Eu mesma já vi, inclusive, uma tese de mestrado que o apresentava como um mau exemplo que deveria ser proibido para as crianças. Já sacaram que o assunto desse texto é o mais popular, irreverente e controverso desenho animado de todos os tempos: o Pica-Pau.
Criado em 1940 pelo cartunista Walter
Lantz (de quem já andei falando por aqui em http://poltrona-r.blogspot.com/2016/10/walt-disney-versus-walter-lantz-tinha.html),
o Pica-Pau (ou Woody Woodpecker, em
inglês) surgiu despretensiosamente, como coadjuvante de um desenho daquele que
até então era o personagem de maior sucesso de Lantz, Andy Panda (de quem provavelmente você já ouviu falar). Mas logo o
pássaro xarope caiu nas graças do povo e ganhou sua própria série de animação,
ofuscando até o próprio Andy.
O estilo politicamente incorreto, que sempre foi a marca registrada
de Walter Lantz (de quase todos os desenhos da época, mas de Lantz em
particular) já aparecia nos desenhos do Andy Panda, mas atingiu seu auge com o
Pica-Pau. Sádico, debochado e vingativo, o “cabeça-de-fogo” adorava azucrinar
suas vítimas das formas mais cruéis possíveis. E não é só – ele fazia coisas consideradas
escandalosas, como fumar e beber em público, tentar cometer suicídio, roubar
gasolina, sacanear policiais, desrespeitar médicos, sair com um bando de prostitutas
e até debochar da cara da morte.
Toda essa virulência, ousadia e
cinismo jamais impediram que o Pica-Pau tivesse milhões de fãs através de
gerações, em todo o mundo e em todos os idiomas imagináveis – superando,
inclusive, os desenhos certinhos e politicamente corretos de agora. Uma bela
prova disso é que eu, como youtubeólatra incurável, tenho me deparado com um monte de vídeos que têm Walter Lantz e o
Pica-Pau como tema. Separei alguns deles aqui para você, leitor, se divertir
e conferir o talento destes novos curtidores de um dos melhores e mais
inteligentes desenhos animados que já existiram. "Marche!"
O canal Você Não Sabia fez uma análise divertida dos momentos mais
controvertidos dos episódios clássicos do Pica-Pau – e, o que é melhor, em
ordem cronológica. Note que os episódios mais politicamente incorretos são
justamente os mais antigos, da década de
1940 e início da de 1950.
Por falar nisso, a internet é repleta
de memes e textos criticando e até declarando ódio ao chamado “Pica-Pau Doidão”, aquele com cara de
maluco, dos primeiros desenhos produzidos. Eu discordo completamente destas
críticas. Afinal, o conceito do personagem criado originalmente por Walter
Lantz era justamente aquele bicho doido e esquisito, discriminado e tido como
louco por outros seres do reino animal. Aos poucos o Pica-Pau foi tendo seu
visual retrabalhado pelos desenhistas até virar o tipo (na minha opinião!) fofinho,
chato e sem graça dos anos 60 e 70,
e ganhar um remake horroroso a partir de 1999.
Quanto a esse remake, eu prefiro nem comentar. A turma que fez o novo Pica-Pau
para mim tem tanta intimidade com a obra de Lantz quanto eu tenho com física
quântica.
O Pica-Pau Doidão para mim é sensacional,
e muita gente não gosta dele porque não o entende, não compreende a genialidade
de Walter Lantz na sua forma mais pura, sem interferência de censores de nenhum
tipo. “Everybody thinks I’m crazy”,
mas de acordo com o meu gosto pessoal, os melhores desenhos do Pica-Pau são
aqueles feitos até 1959 (nem da fase
Pé de Pano eu gosto). Por volta de 1962, o pássaro louco foi ficando menos
louco e mais bonzinho, e essa transformação levou embora pelo menos 70% da
graça dos desenhos. Esse processo de “amenização” teve que acontecer porque,
nos anos 40 e 50, desenhos animados eram exibidos apenas nos cinemas. Com a
popularização da TV nos EUA, na
década de 1960, foi preciso que o Walter
Lantz Studio deixasse suas obras mais leves, para que as crianças pequenas
pudessem vê-las. Como se não bastasse, o custo de produção dos desenhos do
Pica-Pau por episódio foi ficando mais alto, justamente por causa dessa
migração do personagem para a televisão. O orçamento mais baixo e a censura
pegando no pé interferiram, obviamente, na qualidade do trabalho de Lantz e sua
equipe. A emissora comprou também os episódios antigos do Pica-Pau, mas – aí
vem o lado ruim – decidiu fazer algumas modificações neles, para torná-los mais
“família”. O que é uma grande ironia, pois o próprio Lantz sempre afirmou que
nunca teve a intenção de fazer desenhos para crianças, e que sua obra sempre
foi voltada para jovens e adultos (isso explica muita coisa...).
O pessoal do canal Vício Nerd se aprofundou ainda mais
nessa questão da “tesoura” televisiva do que o vídeo anterior. No vídeo criado
por eles, você vai ver algumas cenas que a censura não deixou serem exibidas na
telinha, não só nos Estados Unidos como em outros países, Brasil incluído. É
curioso como, na maioria dos casos, a falta das cenas cortadas deixa o enredo
sem sentido. Um bom exemplo é o episódio de estréia do personagem, “Knock
Knock”, que no Brasil se chama – vai entender – “O Pica-Pau Ataca Novamente” (https://www.youtube.com/watch?v=PTGpjpbeqdQ).
O final original é bem mais engraçado, irônico e inteligente do que aquele que
foi para o ar. Assista e confira.
Já o Felipe Castanhari, do Canal Nostalgia, atende aos pedidos de
inúmeros inscritos seus e mergulha na história de Walter Lantz e do Pica-Pau em
um vídeo muito bacana e completo. De todos os especiais de youtubers que eu
postei aqui, o especial do Castanhari é o que melhor dá ideia da genialidade de
Lantz, pois faz um compilado de trechos de desenhos de diversas fases do
pássaro mais doidão da televisão. Gostei da forma como estas cenas clássicas
foram intercaladas com a narrativa do Castanhari. O youtuber também fala da
evolução dos inimigos e coadjuvantes, como Zeca
Urubu (que tinha uma cara de bandido bem mais assustadora nas primeiras
versões), o esfomeado Zé Jacaré e, claro, o meu desafeto preferido do Pica-Pau,
o ultra-clássico Leôncio, aquele morsa
que no Brasil falava portunhol, mas
que na versão original tinha um sotaque meio alemão, meio sueco (https://pt.wikipedia.org/wiki/Wally_Walrus), uma provável referência aos
inimigos germânicos dos norte-americanos na Segunda Guerra Mundial. Como brinde extra, uma “sessão remember” dos
bordões mais inesquecíveis da história
do Pica-Pau. Quem acompanha o personagem há pelo menos 30 anos vai lembrar de alguns deles: “Mulheres,
iate, mulheres!”, “Se o Pica-Pau
tivesse comunicado à polícia, isso não teria acontecido”, “Vudu é pra jacu”, o “Aêêêê!!!” das Cataratas, e tantos outros. Há até uma homenagem aos dubladores da ave psicopata. Um dos momentos mais
engraçados é o que mostra as versões da
franquia Pica-Pau em videogame. Quem teve infância vai se deliciar.
É surpreendente como cenas que foram
criadas há décadas sobreviveram ao surgimento de diversas mídias e entraram na
era da Internet, onde se transformaram em memes. A obra de Walter Lantz, assim
como a de Roberto Bolaños, Hanna-Barbera e Walt Disney, resiste à passagem do tempo justamente por ser
universal e atemporal. E, claro, pela sua qualidade inigualável. Minha nossa,
minha nossa, minha nossa, nossa, nossa!
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